Não vou falar aqui
de todos os cães que ladraram ao passarem por mim: os piropos de todos os
tipos, as perguntas retóricas porcas, os apalpões na discoteca e fora dela, as
assobiadelas na rua e dentro dos portões da escola, as mãos desenvoltas a tocarem
mais do que devem, os comportamentos e tiradas absurdas justificados pelo vinho em jantares de colégio britânico crème de la
crème. Vou, pelo contrário, dedicar-me a contar o episódio de um cão que passou
por mim sem ladrar, e desde já peço perdão aos animais a quem chamamos cães,
cuja decência não está em causa.
Acho que era uma noite de
primavera. Os dias cresciam e a calmia do lusco-fusco acontecia entre as 7h30 e as 8 da
noite. Devia ter um doze ou treze anos. Saía das aulas de inglês, no cimo da vila, com um grupo de amigas.
Sentíamo-nos grandes. Gostávamos de ir a pé para casa todas juntas, sem pais à
espera em carros. Nessa noite, uma das amigas sugeriu que passássemos por uma rua diferente, para tentarmos criar um encontro “casual” com o rapaz mais
velho por quem se apaixonara na escola. Talvez ele estivesse à janela, talvez
estivesse a entrar em casa, venham lá, não demora nada, pá, vai ser divertido. Essa rua não tinha grande iluminação, ficava fora do caminho. Não gostei da ideia.
Olha agora, ir atrás do rapaz, nem sequer sabes se ele está em casa, ou se gosta
de ti, deixa-te de coisas, ainda o espantas. E decidi esperar por elas ali mesmo, no cruzamento
da estrada que dá para a Câmara Municipal. Elas foram, entre risadas, e eu
esperei, debaixo do poste da luz.
Passados uns
minutos, aproxima-se um carro e pára a uns metros de mim. O condutor olha-me e
sorri. Abre a porta do passageiro e chama-me. A minha primeira reação foi pensar que se tratava de alguém conhecido, esta
vila é tão pequena, quem me diz a mim que não é um tio ou amigo dos meus pais a
oferecer-me boleia. Aproximo-me com meio sorriso. Lembro-me do cabelo loiro
penteado para trás e da pele baça. Lembro-me do sorriso nojento e das palavras, Entra, senta-te. Uma mão no volante, outra no assento do passageiro, a convidar-me. De
repente, algo dentro de mim me diz: foge. E fechando a porta do carro, desatei
a correr. Rua do Vale abaixo, passando pela ponte, até alcançar a Rua 25 de Abril.
Parei apenas dentro do prédio, fechando a porta atrás de mim, sem fôlego.
É aí, no vão da escada, que procuro restabelecer-me, controlar a respiração antes de entrar em casa. Ao
abrirem a porta, os meus pais perguntam-me, Chegaste cedo, está tudo bem?, e
eu, Sim, tudo bem. E as tuas amigas? Já foram para casa, mandam beijinhos. Vou
para o meu quarto, e encerro dentro de mim um encontro que poderia ter mudado o
rumo da minha vida e do meu corpo. Se o carro me tivesse perseguido, se o homem tivesse saído do carro, se....
Voltei a encontrar
ocasionalmente esse homem pelas ruas da Sertã, e sempre que o via enchia-me de
vergonha. Nunca percebi por que razão morria de vergonha sempre que ele
passava. Uma vez, no carro com a minha mãe, ao saírmos da garagem, tivemos de
dar passagem ao carro dele. Passou-nos pela frente como uma cena de filme em
câmara lenta. Ele a olhar-nos com aquele sorriso nojento, o assento ao lado vago, para sempre a convidar, Entra, senta-te. E lembro-me de a
minha mãe ter comentado o quanto aquele homem a incomodava. Fiz de conta que
não ouvi, e tentei esconder a vermelhidão do rosto. Tenho a sensação de que a
minha mãe também o odiava e temia, mas nunca falámos sobre isso. Havia a vergonha a
preencher o espaço entre mim e a minha mãe. Aliás, nunca contei esta história a
ninguém.
Pergunto-me quais
terão sido as consequências deste meu silêncio, motivado pela vergonha. Sem ter
cometido nada de errado, este episódio de tentativa de sedução de um homem mais
velho contribuiu para incentivar em mim uma submissão silenciosa e cheia de vergonha
no que diz respeito aos avanços agressivos dos cães que ladram, mas
principalmente aos avanços dos que não ladram. Como se de certa forma eu, o meu corpo, fossemos culpados do
que tantas vezes acontece quase sem acontecer.
Eu escapei. Mas quantas crianças terão passado por aquele assento?