Monday 13 November 2017

O cão que passou sem ladrar. #eutambém #metoo



Não vou falar aqui de todos os cães que ladraram ao passarem por mim: os piropos de todos os tipos, as perguntas retóricas porcas, os apalpões na discoteca e fora dela, as assobiadelas na rua e dentro dos portões da escola, as mãos desenvoltas a tocarem mais do que devem, os comportamentos e tiradas absurdas justificados pelo vinho em jantares de colégio britânico crème de la crème. Vou, pelo contrário, dedicar-me a contar o episódio de um cão que passou por mim sem ladrar, e desde já peço perdão aos animais a quem chamamos cães, cuja decência não está em causa.

Acho que era uma noite de primavera. Os dias cresciam e a calmia do lusco-fusco acontecia entre as 7h30 e as 8 da noite. Devia ter um doze ou treze anos. Saía das aulas de inglês, no cimo da vila, com um grupo de amigas. Sentíamo-nos grandes. Gostávamos de ir a pé para casa todas juntas, sem pais à espera em carros. Nessa noite, uma das amigas sugeriu que passássemos por uma rua diferente, para tentarmos criar um encontro “casual” com o rapaz mais velho por quem se apaixonara na escola. Talvez ele estivesse à janela, talvez estivesse a entrar em casa, venham lá, não demora nada, pá, vai ser divertido. Essa rua não tinha grande iluminação, ficava fora do caminho. Não gostei da ideia. Olha agora, ir atrás do rapaz, nem sequer sabes se ele está em casa, ou se gosta de ti, deixa-te de coisas, ainda o espantas. E decidi esperar por elas ali mesmo, no cruzamento da estrada que dá para a Câmara Municipal. Elas foram, entre risadas, e eu esperei, debaixo do poste da luz.

Passados uns minutos, aproxima-se um carro e pára a uns metros de mim. O condutor olha-me e sorri. Abre a porta do passageiro e chama-me. A minha primeira reação foi pensar que se tratava de alguém conhecido, esta vila é tão pequena, quem me diz a mim que não é um tio ou amigo dos meus pais a oferecer-me boleia. Aproximo-me com meio sorriso. Lembro-me do cabelo loiro penteado para trás e da pele baça. Lembro-me do sorriso nojento e das palavras, Entra, senta-te. Uma mão no volante, outra no assento do passageiro, a convidar-me. De repente, algo dentro de mim me diz: foge. E fechando a porta do carro, desatei a correr. Rua do Vale abaixo, passando pela ponte, até alcançar a Rua 25 de Abril. Parei apenas dentro do prédio, fechando a porta atrás de mim, sem fôlego. 

É aí, no vão da escada, que procuro restabelecer-me, controlar a respiração antes de entrar em casa. Ao abrirem a porta, os meus pais perguntam-me, Chegaste cedo, está tudo bem?, e eu, Sim, tudo bem. E as tuas amigas? Já foram para casa, mandam beijinhos. Vou para o meu quarto, e encerro dentro de mim um encontro que poderia ter mudado o rumo da minha vida e do meu corpo. Se o carro me tivesse perseguido, se o homem tivesse saído do carro, se....

Voltei a encontrar ocasionalmente esse homem pelas ruas da Sertã, e sempre que o via enchia-me de vergonha. Nunca percebi por que razão morria de vergonha sempre que ele passava. Uma vez, no carro com a minha mãe, ao saírmos da garagem, tivemos de dar passagem ao carro dele. Passou-nos pela frente como uma cena de filme em câmara lenta. Ele a olhar-nos com aquele sorriso nojento, o assento ao lado vago, para sempre a convidar, Entra, senta-te. E lembro-me de a minha mãe ter comentado o quanto aquele homem a incomodava. Fiz de conta que não ouvi, e tentei esconder a vermelhidão do rosto. Tenho a sensação de que a minha mãe também o odiava e temia, mas nunca falámos sobre isso. Havia a vergonha a preencher o espaço entre mim e a minha mãe. Aliás, nunca contei esta história a ninguém.


Pergunto-me quais terão sido as consequências deste meu silêncio, motivado pela vergonha. Sem ter cometido nada de errado, este episódio de tentativa de sedução de um homem mais velho contribuiu para incentivar em mim uma submissão silenciosa e cheia de vergonha no que diz respeito aos avanços agressivos dos cães que ladram, mas principalmente aos avanços dos que não ladram. Como se de certa forma eu, o meu corpo, fossemos culpados do que tantas vezes acontece quase sem acontecer. 

Eu escapei. Mas quantas crianças terão passado por aquele assento?


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