Wednesday 8 July 2020

Água mami: relato de um parto (em tempos de pandemia)

            O primeiro sinal surgiu a caminhar pelo jardim, numa tarde de inícios de maio. Um dia como tantos outros, aparentemente desirmanado do calendário, estranhamente calmo, pandémico. Nesse tempo, todo o seu corpo se habituara a escutar-se a si próprio, em busca de provas, e agora elas despontavam, inexplicavelmente, fora do corpo. Bastou que uma folha de palmeira se mexesse alguns milímetros para que tudo mudasse. O silêncio em torno da casa ganhou outra textura, como se se tivesse aberto e dentro dele se revelasse um lago, e as águas desse lago tremessem a cada passo que dava, em torno ao jardim, até formarem uma ligeiríssima onda. Vivia-se a tarde do dia 3 de maio. Era dia da mãe, e também o primeiro dia a seguir ao fim do estado de emergência. Seria também este o momento em que deixava de estar grávida?

Guardou para si o pequeno conhecimento da folha de palmeira e observou-o de todos o lados, enquanto alargava o passeio confinado. Sempre que alcançava a folha, aquela que ultrapassa o muro do jardim e alcança o cimento fendido por ervas daninhas, surgia o lago, com a sua levíssima onda a viajar até à orla. E a onda impelia-a a continuar. Só mais uma volta. A cada passo, inquiria o saber alcançado, que era mais que um saber, era uma espécie de poder. Às voltas em redor da casa, imaginava que essa casa era um enorme guarda sol, e o braço da palmeira o braço do guarda-sol, e o jardim uma grande praia. Fora assim que aprendera a andar, às voltas agarrada a um guarda-sol, numa praia do norte, diziam-lhe os pais. E isso agora fazia sentido. Os últimos meses afiguraram-se-lhe como um longo passeio circular em redor de alguma coisa, a cabeça a tocar na cauda, os regressos a cheirarem a cauda das partidas, o interior a recomeçar-se no exterior, e os meses a espraiarem-se por toda uma vida, ao longo da qual deixara de saber onde começava e onde terminava. Era isso estar grávida.

Pensou: a onda vai imobilizar-se se eu parar de caminhar. E assim aconteceu. Ao entrar em casa, foi como se nada tivesse acontecido. Não contou a ninguém. Mas o lago lá estava, expectante, como um espelho de água num dia sem vento. Depois do jantar, a filha virou-se para ela e disse: água mami. Ela anuiu e subiram as escadas juntas, de mão dada, um dois três quatro cinco seis sete oito nove dez onze doze treze catorze quinze desaaaa-seis rumo à banheira, que encheram por metade. A barriga ocupava muito espaço e a filha parecia hipnotizada com a visão daquele monte, tocando o umbigo que lhe parecia um nariz. Na banheira, as ondas multiplicaram-se, recomeçando com novo ímpeto e espraiando-se pelo dia seguinte.

A viagem para o hospital deu-se à meia noite e meia do dia 5, quando as ondas se tornaram constantes. O marido queria ir mais cedo, mas ela preferiu ouvir-se a si própria. À chegada, depararam-se com a incredulidade mal escondida do enfermeiro, que não estavam à espera de um parto não induzido. Qual o motivo da sua visita? e a pergunta deixou-a atónita. Demorou uns segundos para lhe responder, decidindo para isso não usar a palavra onda, para não espantar ainda mais o homem. Mas não marcou com a sua médica uma data para o parto? Não, não marcara. Esperara. Após lhe medir a temperatura, pediu-lhe que se sentasse na cadeira dos CTGs, onde permaneceu, obediente, munida da máscara e do audio-livro no telemóvel, à espera que a máquina confirmasse o óbvio. Nos auriculares, uma voz narrava uma imagem de um tapete voador que abraçava, como uma mão fechada, todas as mulheres que a ele se entregassem. Já ganhou um bilhete de entrada, sorriu o enfermeiro, enquanto analisava o gráfico das contrações, como se lhe estivesse a dar uma grande notícia. Numa outra sala, a enfermeira esperava-a. Não se sentou, embora a cada onda sentisse necessidade de se apoiar em alguma coisa. Só que o medo do contágio impelia-a para longe das superfícies. Encostou o ombro à parede. Aproveitou o tempo entre duas ondas para esfregar as mãos com desinfetante. Antes de abrir as pernas para o ritual seguinte, o do toque, fez o que tinha decidido fazer sempre que alguém lhe quisesse tocar no corpo. Pediu que lhe explicasse a razão da necessidade. E a enfermeira explicou, e no seu entender fê-lo bem, não seria maldosa, viu isso, não sabe como mas viu-o, na voz escondida debaixo da máscara. Então ela abriu as pernas, e permitiu que a invadisse. Três centímetros. Os três centímetros ecoaram pela sala e dispersaram-se pelos corredores vazios. Só três centímetros. Reparou então que o hospital era uma ilha na noite, habitada apenas por dois enfermeiros e uma grávida. Uma ilha no meio da pandemia, rodeada de ondas. Escondida por detrás da máscara, que era demasiado grande para a sua cara, sentiu-se só.

Vai querer uma epidural?, perguntou-lhe como quem oferece um café a alguém que se senta para almoçar. A enfermeira escreveu na folha que não. Ofereceu-lhe também uma cadeira de rodas, mas já tinha percebido que as ondas eram mais fortes quando se sentava, por isso declinou. Agarrada às paredes, percorreu por entre as ondas aqueles corredores vazios, assolados por uma energia pandémica silenciosa. Dentro do quarto, esperava-a as malas e o marido, já sem máscara, a quem não tinham tirado a temperatura, e a quem não iriam, afinal, fazer o teste pandémico. Teria que permanecer no quarto sem sair, até que tudo se resolvesse. Até os presos têm direito a meia hora por dia ao ar livre, queixou-se no seu português quebrado. Mas todos fingiram não ouvir. Após lavar as mãos novamente, continuou com o audio-livro, já deitada. Testaram-na à covid, enfiando-lhe um longo tubo pelo nariz. Tinha visto na televisão muita gente a fazer testes e todos apareciam sentados, de mãos nas pernas e cabeça inclinada para trás, oferecendo o nariz aos enfermeiros numa imagem que poderia ser de docilidade e paz, mas que, afinal, como num quadro da Paula Rego, era de medo, poder e submissão perante os extenuantes plásticos dos enfermeiros. Porém, ninguém vinha depois dizer que doía. Agora descobria que era uma experiência dolorosa que a distraiu das ondas por uns instantes. Colocaram-lhe um cateter na mão. Voltaram a cingir-lhe os movimentos com outro CTG, informando-a que, se quisesse ir à casa de banho, teria de chamar alguém para a desamarrar. E novamente: vai querer uma epidural? Depois desapareceram pela ilha adentro antes que ela pudesse perguntar-lhes onde estava o botão de chamada.

A barriga estava demasiado apertada. Queria mexer-se, caminhar, reclamar, e tê-lo-ia feito se esta fosse a primeira vez, mas resolveu aguentar o incómodo. Era importante não desperdiçar nenhuma força, sabia o que aí vinha, um ciclo de ondas que se intensificaria pela noite dentro até à exaustão, e era importante não desperdiçar energias. Concentrou-se na respiração e tentou descontrair-se com a ajuda das imagens do audio livro. Os exercícios de respiração acalmaram-na e foi aceitando cada onda, deixando que ela surgisse, abrisse, e se espraiasse. O marido deitara-se entretanto no sofá-cama, mas notava-se pela respiração que estava alerta a cada som.

Às 05h30 as imagens que ouvia deixaram de a ajudar. Repara que não se mexera da cama desde que ali chegara, e que, não sabe exatamente quando, deixara de apreciar o fluir das ondas, passando a suportá-las, cada vez com mais dificuldade. Resolve pedir ajuda. As enfermeiras surgem dos corredores pandémicos e dizem-lhe que vão fazer o toque. 5 centímetros, ainda a tempo de uma epidural, se ela quiser. No meio das ondas constantes, ela pede que lhe expliquem o procedimento e recebe então uma explicação detalhada, Vai sentir-se no céu, mas antes disso tem que vir uma médica fazer um novo toque e avaliar a situação. Ela nega-se a um terceiro toque, em seu entender inútil, e perante a insistência das enfermeiras, começa a ficar nervosa. O bebé dá sinais de desconforto, que se traduzem num alarme vibrante do CTG. O marido acorda. Ponha-se de quatro em cima da cama. Foi o que bastou para o bebé acalmar e as dores melhorarem. Por que razão a obrigavam a estar amarrada a uma cama toda a noite? Lembrou-se das voltas que tinha dado em redor da casa, e perguntou-se como seria se o parto estivesse a acontecer no seu próprio quarto, na sua banheira, junto aos seus. Talvez nessa situação não precisasse de anestesias. Quando chegou a médica, voltou a dizer-lhe através da máscara que não queria mais um toque. Tinha um receio real que lhe rompessem as águas artificialmente durante essa operação táctil. As enfermeiras, vestidas de igual e com a mesma expressão, reuniram-se então com a médica, uma mulher mais baixa, a um canto do quarto para decidirem que estavam perante uma ‘naturalista’. Após esta pequena conferência, anunciaram que está bem, não é preciso novo toque, como se fossem elas a decidir e não ela, vamos chamar a anestesista para a epidural.

Tens a certeza? O marido tinha assistido a tudo em silêncio. Nos meses anteriores, tinham falado em evitar a epidural, mas não a todo o custo. A memória do parto anterior pairava entre eles. No entanto, a pergunta fez despontar a cabeça do monstro da culpa. Como se estivesse a fracassar. A vontade de chorar, engoliu-a nesse momento. Apesar das dúvidas, escolheu dizer que tinha a certeza, deixa-te guiar por mim. Na verdade, só quando lhe espetaram a agulha nas costas e sentiu uma dor fina e fria a percorrer-lhe o corredor da espinha é que soube. A escolha era certa, não tinha fracassado.

Com efeito, começou logo a sentir-se no céu, e todo o seu corpo serenou, juntamente com o do marido, como se a agulha se tivesse alongado das costas dela até às dele. Podia agora esticar-se na cama e esperar que as ondas surgissem, uma e outra, e outra, e outra. Já não estava na orla da praia mas desse novo lugar podia observar as ondas ao longe, a alisarem a areia, subindo pela praia e anunciando a maré cheia. Reparou, pela primeira vez, no som dos batimentos cardíacos do bebé, que a máquina do CTG lhe trazia constantemente, como uma promessa. Fechou os olhos e respirou fundo. O bebé estava mais perto e vinha a cavalo, num trote constante. Cada vez mais perto do local de encontro. De olhos fechados, ela abandonou o audio-livro e deixou que o som do bebé a cavalo a guiasse até esse local por ele combinado. Tudo o que tinha de fazer era deixar-se guiar. A passagem era cada vez maior. 6 centímetros, 7 centímetros, 8 centímetros.

Aos 9 centímetros, as ondas alcançaram-na novamente e percebeu desta vez que eram mornas. Tinham-se rompido as águas, as mesmas que envolviam o bebé e que agora a envolviam a ela, revertendo a lógica da barriga. Era ela que nascia? Era ele quem a esperava? Tudo se intensificou. Olhou para o marido, que teria de permanecer no quarto durante a última fase do parto, e emocionou-se. Vai correr tudo bem, disseram um ao outro, a imitar o slogan dos pósteres com arco-íris a começar e a terminar em nuvens colados nas janelas por esse país fora, mas não deu para ver se estavam a sorrir.

As luzes do teto passam-lhe agora por cima da máscara até à sala de parto, onde lhe pedem que rebole para outra cama. Seguram-lhe as pernas ao alto e encaixam-nas nos apoios, mas um deles, o da esquerda é desconfortável. Ela quer mexer-se mas está, uma vez mais, imobilizada, para que a médica possa estar confortavelmente sentada num banco entre as suas pernas. Nessa sala começa a fazer força, era tudo o que o corpo lhe pedia que fizesse. Faz força até o pescoço ficar vermelho, mas logo lhe dizem que está a fazer mal, tem que ser mais abaixo, a partir da barriga. O mesmo erro da última vez que pariu, e logo imagens difíceis lhe sobem ao cérebro, as mesmas que nos últimos meses procurara manter debaixo do tapete da memória. Concentra-se e volta a tentar.  A intensidade é inacreditável. Sente o bebé a descer devagar dentro de si e essa sensação é nova, apesar de ser uma segunda gravidez sente o que nunca sentiu e volta a fazer força, agora sem sequer pensar na técnica do que está a fazer. O corpo entra em auto piloto, desaparece tudo, a médica, o corredor com as luzes pálidas, o marido preso no quarto, a cama que a apoia, a máscara que a esconde, as pernas levantadas, o cateter, até ficar só a voz dela e o bebé, ela grita como se a sua vida dependesse disso, o bebé avança, o corpo abre um pouco mais e torna-se verdadeiramente uma passagem, não só para o bebé mas para ela também, ela uma vez mais criadora de algo verdadeiramente novo, daqui a pouco vai sentir-se no céu está quase estou a tocar-lhe na cabeça mais uma vez força mais uma vez gritos, mas compassados com silêncios, não tem nada a ver com o que se vê nos filmes, o bebé desce devagar como se sentisse já uma certa nostalgia e quisesse despedir-se por fim daquela cápsula morna que nunca mais vai poder tocar cheirar sentir ela gostava que lhe dissessem que está a ir bem e que está quase por favor digam-me que está quase vou dar-lhe uma ajudinha rasga-se a pele aqui mais força mais força e o bebé já não desce mas desliza e transferem-no para os meus braços.

    É um rapaz quem chora agora. A máscara volta a surgir e absorve as minhas lágrimas, sempre serve para alguma coisa, estou convencida de que fui eu quem nasci guiada por ti, para poder encontrar esta voz que agora aqui relata coisas do outro mundo, o mundo que deixei para trás como uma pele de cobra no momento em que disse

Benjamim. O que tens para me ensinar?

Já no quarto, a enfermeira informa-me que não estou contaminada, e que por isso ninguém me vai tirar o bebé por duas semanas. Respiramos de alívio, e abraço-te com mais força. Lá fora, o dia nasce no mundo velho, por entre curvas achatadas, máscaras descartadas no lixo errado, mortes, festas ilegais, protestos anti-racistas e estátuas tombadas no chão, tudo como acontece nos filmes. 

Benjamim, o que tens para nos ensinar?